domingo, julho 27, 2008

varrendo por uns cêntimos

"Fanta Lingani dorme num chão de cimento e começa o dia às quatro da manhã, vestindo-se silenciosamente no escuro. À sua volta, os filhos dormem no chão rachado debaixo de um tecto de placa de zinco - condições comuns num país que está no número 176 entre os 177 que compõe o Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas.
Há um ano, Fanta teria começado por fazer uma pequena fogueira para aquecer uma chávena de café fraco para si. Mas agora até isso é demasiado caro.
Sacrifícios como este causaram distúrbios em Fevereiro em Ouagadougou, a capital, e outras cidades ao longo do país. Centenas de pessoas foram presas após terem ateado fogo e destruído edifícios governamentais em protesto contra os altos preços. Mas para Fanta a luta é mais silenciosa, e mais difícil, a cada dia que passa, e começa antes de o Sol nascer.
Fanta, que diz ter cerca de 50 anos, atravessa o pátio poeirento e a cabana de dois quartos onde o seu marido dorme numa cama de casal com um colchão grosso. A rua suja está lamacenta e enevoada dos aguaceiros que caíram durante a noite.
Após caminhar meia hora pelas ruas negras como breu, apresenta-se ao trabalho e veste a comprida capa verde da Brigada Verde, um programa municipal que paga a mulheres pobres o equivalente a 70 cêntimos para varrer as ruas duas vezes por semana.
Fanta pega em duas pequenas vassouras de palha e empurra um carrinho de mão ao longo de uma larga avenida deserta. Na neblina alaranjada dos candeeiros, dobra-se pela cintura, até tão baixo que o seu traseiro fica mais alto que a cabeça, e começa a varrer a terra vermelha para pequenos montes.
O "shh-shh" do seu varrer é o único som que se ouve, para além do cantar de alguns galos e os risos de homens no bar aberto toda a noite ao fundo da avenida.
Trabalha ao longo de uma parte da estrada com cerca de 150 metros, enquanto dúzias de outras trabalhadoras desta equipa completamente feminina varrem as suas áreas. Um camião-tanque sobre a estrada, atirando o pó para a sua cara e desfazendo os pequenos montes de terra. Ela tosse, ajeita o lenço cor-de-rosa na cabeça e varre a poeira outra vez.
Fanta varre até ao nascer do Sol, empurrando as pequenas pilhas de terra para um prato de metal, atirando-as depois para um carrinho de mão e finalmente para um buraco numa ruazinha lateral não pavimentada.
Pelas sete da manhã acabou a sua área. Mas tem que esperar durante uma hora até que o supervisor apareça e controle o seu trabalho. Daqui a duas semanas receberá o seu salário mensal, que não chega aos 6,5 euros. (...)"


in jornal Público
domingo, 27 de Julho de 2008


há coisas que apertam mesmo o coração! às vezes pergunto-me se somos todos filhos do mesmo Deus? se realmente vivemos todos no mesmo planeta? este episódio retrata um bocadinho na imensidão do que se passa no Burkina Faso, mas não é preciso irmos tão longe... basta olharmos cá para dentro para percebermos que este tipo de degradação humana, de tristeza, de pobreza, de dor existe mesmo ao nosso lado, na nossa rua, no nosso bairro, na nossa cidade. até quando vamos fechar os olhos? até quando vamos ser capazes de manter a (cruel) indiferença? até quando?

"Ao perdermos o interesse apaixonado pelos nossos semelhantes perdemos a capacidade de sermos felizes." (A. Montagú)
"Dá, se puderes; se não puderes, sê afável." (Santo Agostinho)

3 comentários:

maoqueeaaf disse...

:(
Somos mesmo uma vergonha de espécie!...
Quanto mais penso no quão cruel o ser humano pode ser mais me apetece ser um qualquer outro animal!...

maoqueeaaf disse...

:(
Somos mesmo uma vergonha de espécie!...
Quanto mais penso no quão cruel o ser humano pode ser mais me apetece ser um qualquer outro animal!...

Anónimo disse...

...a actual forma de viver é feita de muito pouca disponibilidade para o próximo, para os nossos e às vezes até para nós...